O álbum Memórias do Fogo, do El Efecto, surge como uma narrativa poderosa sobre trabalho e resistência. Crítico musical Márcio Machado, ao avaliar o álbum observa que o disco “já nasce sendo um dos melhores álbuns do ano, tratando exatamente de memórias, da História, sendo forte, duro nas críticas”. Assim, existe um diálogo entre a composição da banda e a historicidade do trabalho brasileiro.

A abertura “Café” mergulha na era colonial. A letra grita “Colônia! Teus filhos já estão de pé… Pesado é o fardo — e o gosto amargo”, evocando o dia a dia cruel do campo brasileiro. O crítico nota que a música usa influência de flamenco e até hardcore para narrar “trabalho pesado na lavoura” e “a história de pessoas que davam suas vidas” pela produção do café. O tema é explícito: “braços baratos, curvados em nome de um grão” sustentam a riqueza alheia. Apesar da abolição formal em 1888, Jane Maria ressalta que nada garantiu vida digna à população negra libertada: “Que liberdade é essa?”, questiona, lembrando que a Lei Áurea não veio acompanhada de moradia, trabalho ou direitos mínimos. Nas ondas sonoras de “Café”, a dor dos trabalhadores encontra fúria: “Bomba contra foice, metralha contra facão / Sangra a insurreição camponesa”. O grito camponês, escondido na história oficial, é reafirmado como parte vital dessa memória do fogo.

A faixa “Carlos e Tereza” amplifica nomes apagados pelo tempo. Tomando como fio a luta quilombola e revolucionária, ela relembra a data em que Tereza de Benguela foi morta: “Mas tu tem que lembrar — com orgulho! 25 do mês de julho!”. A letra manda seu nome ecoar “na cidade, no campo, na rua ou na cela”. Assim, o verso consagra a ideia de que a resistência não se perde: “Teu nome há de ecoar que eu vou levar”. Como observam intérpretes, a música até evoca ritmos populares — uma batida que lembra samba e axé — e reforça datas de revolta. Jane Maria lista líderes negros fundamentais nessa história: nomes como Dandara, Zumbi dos Palmares, Tereza de Benguela e tantos outros, cujos “desafios de construir organização numa estrutura extremamente racista” ela destaca. O crítico musical Thiago Antunes também nota que “Carlos e Tereza” cita explicitamente Teresa de Benguela e Carlos Marighella, ambos emblemáticos em lutas contra desigualdades. Essa celebração de lutadoras e guerrilheiros reforça que a memória dos oprimidos deve substituir a figura romantizada da “heroína” Isabel.

Da abolição ao aplicativo, se repete uma ilusão: a ideia de “liberdade” sem direitos. Jane Maria confronta o mito de 13 de maio, perguntando irônica “que liberdade é essa? Comemorar o quê?”. Para ela, o fim da escravidão formal sem reparação deixou a população negra sem moradia, educação ou voz em espaços de poder. Na mesma linha, Willian Mendes aponta que falar da Lei Áurea é revelar “uma das maiores ilusões da história do Brasil”: Isabel assinou a abolição sob pressão política, mas não redistribuiu terras nem implantou políticas de inclusão, perpetuando a exclusão racial. Para o Movimento Negro Unificado, o 13 de maio não é dia de festa, mas de denúncia: “a abolição só será completa com o fim do racismo estrutural e a superação das desigualdades”, afirma Willian. Nesse contexto, as músicas de Memórias do Fogo coincidem com a crítica histórica de Jane e Willian, mostrando que a “liberdade” vendida pela abolição nunca garantiu justiça social.

O fio que liga o passado escravista ao presente precarizado é a exploração do trabalho. Em “La Comuna”, El Efecto dramatiza o e agora? da uberização. O refrão denuncia: “O algoritmo é o chicote que se aprimorou”. A letra descreve o entregador pedalando freneticamente, escravizado pela meta do app, e confronta o ouvinte com marcas do mercado: “Rappi, Ifood, Uber Flash… Sanguessugas vão nas costas”. As palavras são diretas: o trabalhador contemporâneo está “livre” para escolher o trabalho, mas só existe no contexto de absoluta vulnerabilidade, sem direitos básicos. Jane observa justamente isso: na lógica do app, te vendem liberdade de escolha, porém “os direitos mínimos são alienados”. Em outras palavras, a “uberização” do trabalho avança como continuação do que a abolição deixou inacabado, mantendo o trabalhador submisso como no antigo regime escravista.

Musicalmente, o El Efecto forja esse discurso misturando gêneros e elementos diversos. Críticos notam que a banda nunca se priva de mesclar ritmos inusitados: do funk ao hardcore progressivo, do samba de roda ao rock pesado. Ouça Memórias do Fogo e se percebe as texturas: “O Drama da Humana Manada”, por exemplo, alterna batucadas de samba e até cita Gonzaguinha no meio de riffs pesados. Em “Carlos e Tereza”, há “uma pegada de samba de roda, pagodão baiano” que embala a letra de combate. Segundo os próprios músicos, o disco mistura sons brasileiros e rock de forma ainda mais acentuada nesta fase. Essa fusão fortalece a crítica social: mesclar ritmo tradicional e rock reforça o espírito de rebeldia. Como diz outra análise, o álbum combina “as guitarras pesadas” com “batucadas sinistras” de tal maneira que o pesado rock se alterna com percussão circense, quase como se Caetano fosse linchado num palco. A variedade instrumental – cavaquinho, escaleta e outras sonoridades regionais entrelaçam-se ao peso do metal – faz da arte da banda um forte veículo de denúncia.

Em suma, a trajetória do trabalhador brasileiro aparece no álbum e nas entrevistas como um ciclo contínuo de exploração e resistência. De “Colônia! Teus filhos já estão de pé” a “o algoritmo é o chicote que se aprimorou”, a mensagem é clara: a opressão mudou de forma, mas persiste. E a reportagem reafirma: a verdadeira história do trabalhador brasileiro não está nos tribunais da Princesa Isabel, mas nas vozes de Dandara, Aqualtune, Zumbi, Luiz Gama, Tereza de Benguela e tantos outros, cujos nomes e lutas “há de ecoar” em cada esquina do país.

Mas teu nome há de ecoar!
No condomínio e na favela
Teu nome há de ecoar!
Na avenida e na viela
Teu nome há de ecoar que eu vou levar
Na cidade, no campo, na rua ou na cela.

Créditos da imagem da capa: Rowan Freeman, Unsplash